Ao ser diagnosticado com uma doença da córnea, o educador físico Daniel Arantes Gonçalves, 23, não seguiu as recomendações médicas. Não usava óculos por vergonha dos amigos e a maior parte do tempo escondeu dos pais que não estava enxergando bem. As atitudes dele tiveram consequências. A doença progrediu, ele perdeu 90% da visão do olho esquerdo, 50% do direito e precisou fazer um transplante de córnea. Leia o depoimento abaixo.
“Aos nove anos, usei óculos pela primeira vez para poder ver de longe, mas com o tempo parei de usar. Com 13 anos, a visão piorou. O primeiro sinal foi a falta de nitidez, depois a visão ficou turva, embaçada. Eu comentei com a minha mãe e ela me levou ao oftalmologista.
Fiz um exame e a médica disse que deu alteração. Perguntou se eu tinha algum tipo de alergia, e se coçava o olho com frequência. Respondi que sim. Ela disse que, aparentemente, estava em um quadro inicial de ceratocone. Ela falou vagamente sobre a doença, me indicou óculos e me aconselhou a fazer um acompanhamento anual. A médica falou da condição como se fosse algo simples, em nenhum momento falou da gravidade e da possibilidade de perda da visão.
Não gostava de usar óculos para não sofrer bullying
Minha mãe ficou despreocupada, confiou na informação da médica e providenciou os óculos. A recomendação era a de que eu deveria usá-los para todas as atividades: ler, escrever, assistir a TV. Não me adaptei, tinha vergonha e não queria me expor.
“Já tinha visto meus colegas fazendo bullying com outros alunos chamando de nerd e quatro olhos. Não queria ser a próxima vítima deles. Minha mãe chamava minha atenção, mas não gostava de usar, só usava esporadicamente em casa, e nunca na escola”.
Aos poucos, fui perdendo a visão. Forçava, mas não adiantava, percebia que o olho esquerdo estava pior, mas não falava nada para ninguém. Teve um dia que estava jogando videogame na sala, quase encostando na TV. Minha mãe viu e perguntou por que eu estava tão próximo. Disse que estava em uma distância normal, não me dava conta de que estava tão perto das coisas, as outras pessoas que reparavam.
Como eu parei de usar óculos de vez, não reclamava mais e escondia essas situações para não ter cobrança.
Teve uma vez que minha mãe foi chamada na escola. A professora se queixou que eu tinha preguiça de fazer de fazer as atividades. Eu sentava na frente e, mesmo assim, tinha dificuldade para enxergar as letras na lousa. Não anotava a lição no caderno por esse motivo, mas dava a desculpa de que era porque lembrava. Aproximava muito a cabeça do caderno para poder ler e não escrevia mais em cima da linha.
Tinha o costume de jogar futebol com meus amigos no fim de semana. Devido à pouca visão, tinha um delay durante a partida. A bola chegava antes, mas só percebia depois e acabava perdendo o controle.
“Meus amigos me xingavam, tiravam sarro dizendo para eu me aposentar. No começo, aceitava de boa, mas os comentários se tornaram frequentes e quis parar de jogar”.
Foi quando reconheci para a minha mãe que não estava enxergando bem, que os dois olhos estavam ruins, mas principalmente o esquerdo.
Esperei cinco anos para fazer o transplante de córnea
Ela me levou a outro oftalmologista, e fiz vários exames. A médica disse que eu tinha ceracotone, que estava com perda gravíssima de visão nos dois olhos. Minha mãe comentou que tinha recebido esse diagnóstico havia dois anos, mas que a médica anterior havia dito que era algo simples. A oftalmologista explicou a condição e pediu para passar com um especialista no assunto.
Nós procuramos outra profissional, fiz mais exames e a médica disse que tinha perdido 90% da visão do olho esquerdo e 50% do direito.
“Ela explicou que minha córnea do lado esquerdo estava super comprometida, que estava praticamente cego e que a única alternativa era o transplante”.
Disse que a tendência era perder ainda mais do lado direito. Para isso não acontecer, me indicou dois tratamentos, o cross-linking e a implantação do anel de Ferrara. O objetivo era evitar a progressão da doença.
Inicialmente, não acreditei e continuei com o mesmo comportamento. Só fui perceber que era grave quando as minhas atividades do dia a dia foram impactadas mais intensamente. Minha mãe ficou desesperada, isso gerou um enorme processo de culpa nela.
Ela se sentiu mal por não ter notado a gravidade do problema e por não ter buscado uma segunda opinião quando a primeira médica deu o diagnóstico. Disse que ela não era responsável por isso. Assumi a culpa porque não quis usar óculos e escondi a situação.
Na época, tinha 15 anos. A médica disse que quanto mais jovem fizesse o transplante, maior seria a probabilidade de rejeição. O indicado seria esperar até eu completar 20 anos. Teria de esperar e fazer acompanhamento periodicamente para monitorar a evolução do olho direito.
Entrei em depressão e me culpei
“O diagnóstico do ceratocone mudou a minha vida e da minha família. Nós tentamos manter a minha rotina o mais próximo da normalidade, mas foi uma fase difícil, precisei fazer várias adaptações”.
Minha mãe reuniu meus amigos em casa e disse que ia precisar da ajuda deles. Não andava mais sozinho, quando queria ir a um show, aniversário, shopping, estava sempre acompanhado de um familiar ou amigo. Não pegava mais ônibus, ia sempre de carro com alguém.
A escola foi uma grande parceira nesse processo. Sentava na primeira cadeira e os professores usavam cores escuras na lousa para eu tentar enxergar. As provas eram orais ou alguém escrevia para mim. Fazia a lição de casa com o auxílio dos meus pais. Eles liam para mim e eu ditava o texto ou a resposta. Foi dessa mesma maneira que consegui fazer o Enem. Como tinha baixa visão, fiz a prova em uma sala separada com um auxiliar. Ele lia as perguntas e eu ditava as respostas e a redação.
Como sempre dependia de alguém para fazer qualquer ação simples, perdi a vontade de fazer as coisas e não fazia mais nada. Entrei em depressão e caiu a ficha de que se tivesse falado antes, poderia ter evitado essa situação. Me isolei, me afastei dos meus amigos e comecei a fazer terapia.
Com o tempo, fui aceitando minha condição e achando caminhos para ter a minha independência. Aos 18 anos, entrei na faculdade de educação física. Não quis que meus pais falassem na universidade que tinha baixa visão. Se tivesse alguma questão pontual, resolveria diretamente com os professores. Não queria ser o diferente, queria superar minhas limitações.
Começar a faculdade e voltar ao convívio social me deram segurança, fui me acostumando e recuperando a percepção de que eu era uma pessoa normal.
Todos da minha família se tornaram doadores de órgãos
Em 2016, fiz 20 anos e entrei para a fila do transplante. Em cinco meses, consegui uma córnea compatível. O que mais nos comoveu foi que, para voltar a enxergar, uma outra mãe teve de perder um filho. Isso mobilizou nossa família e todos se tornaram doadores de órgãos.
Minha cirurgia foi tranquila e no mesmo dia recebi alta. Fiquei com o olho um pouco dolorido e de repouso por 15 dias. Em um mês, retornei à minha rotina, mas sem atividades intensas. Voltei a jogar bola e usava óculos de proteção. Tomava o máximo de cuidado para não sofrer nenhum trauma nos olhos.
O transplante de córnea do olho esquerdo me devolveu a possibilidade de lutar pelos meus objetivos. Antes da cirurgia, meus planos ficaram parados. Com a visão, me senti livre e independente para fazer coisas básicas sozinho, como pegar um ônibus ou ler um cardápio.
Tirei minha carteira de habilitação, comprei um carro e realizei meu sonho de dirigir. Concluí a faculdade, atualmente trabalho como educador físico com ênfase em recreação infantil.
Não esconda seu problema, peça ajuda
Hoje em dia, uso óculos o tempo todo, só tiro para tomar banho e dormir. São sete graus no olho esquerdo e 2,5 no outro. A visão do olho direito se estabilizou, continuo com 50%.
Após passar por essa experiência, aprendi que se estiver com algum problema, não posso guardar só para mim. Tenho a humildade de admitir que errei e paguei um preço por isso.
Me arrependo do que fiz, se tivesse exposto minha situação antes, poderia ter evitado a gravidade do meu caso. A qualquer pessoa que esteja passando por uma dificuldade, deixo o conselho: peça ajuda, fale das suas limitações e aceite ser ajudado”.
O que é o ceratocone?
Ceratocone é uma doença da córnea. Trata-se de uma condição clínica relativamente comum, em que ocorre uma alteração estrutural que, somada ao impacto ambiental, leva à falência biomecânica, ou seja, a córnea não mantém seu formato e sofre afinamento e protrusão, o que induz irregularidade. É uma doença progressiva.
Qual a causa da doença?
O ceratocone acontece por uma combinação entre as características do paciente que são determinadas pela genética e o ambiente. Entre os fatores ambientais, o ato de coçar os olhos e dormir fazendo pressão contra os olhos são os mais relevantes para causar alteração na estrutura da córnea e gerar a falência biomecânica. As características de curvatura e espessura da córnea são relacionadas com a genética.
É possível que uma pessoa tenha uma genética que indique predisposição ou suscetibilidade (uma córnea mais fraca) e nunca desenvolva a doença porque ela não coçou os olhos. Por outro lado, um indivíduo que tenha uma córnea com estrutura relativamente normal pode desenvolver a doença se coçar muito os olhos, ou se tiver outro tipo de trauma que enfraqueça a estrutura da córnea.
Quais os sintomas?
Na fase inicial, o ceratocone pode não gerar qualquer sintoma. Esta é a fase assintomática. A mudança do grau dos óculos pode ser o primeiro fator que indique a condição, principalmente quando o astigmatismo está aumentando e ficando menos regular. As queixas de piora na qualidade da visão, perda progressiva da visão e os óculos não funcionarem mais tão bem se manifestarão em fases mais avançadas da doença. Ceratocone tem grande relação com quadro de alergia ocular. Com isso, é comum o paciente relatar coceira, irritação nos olhos e sensibilidade à luz.
Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico é feito pelo oftalmologista com base na clínica do paciente, nos sintomas e nos sinais do exame geral. O exame de imagem mais comum é a topografia de córnea, que estuda a regularidade da superfície. Além da topografia, a tomografia de córnea estuda a estrutura de forma tridimensional, caracterizando as faces anterior e posterior juntamente com o mapa de espessura.
Outros exames podem ser realizados, como o OCT de córnea para estudar a camada de células epitelial, o estudo biomecânico da córnea e o estudo do wavefront ocular. Estes exames complementares servem para diversos aspectos da diagnose em ceratocone, incluindo confirmar o diagnóstico, fazer o estadiamento (severidade) da doença, avaliar o prognóstico da evolução, realizar o seguimento clínico e planejar o melhor tratamento para cada caso.
O ceratocone ocorre a partir de que idade?
Cada vez mais percebemos crianças com a doença. Pode ocorrer desde quatro anos de idade e, geralmente, evoluir até os 35 anos, mas muitos casos podem progredir depois desta faixa etária. Temos observado muitos jovens com quadro estável de ceratocone, principalmente se não coçam os olhos.
Quais os tratamentos para o ceratocone?
Atualmente, o tratamento do ceratocone tem basicamente dois objetivos: a reabilitação visual e a prevenção da perda da visão. A ideia é estabilizar a doença e não deixar progredir. É importante destacar que é possível o paciente estar enxergando bem, mas ter a doença em progressão.
O tratamento se inicia com a educação do paciente e dos seus familiares. Por este motivo, iniciamos em 2018 a campanha de Violet June com o objetivo de conscientizar sobre o ceratocone. O lema é: a falta de informação e a desinformação pode trazer mais sofrimento do que a própria doença.
Os óculos são a primeira linha de tratamento para melhorar a visão, mas a irregularidade gerada pelo ceratocone limita o benefício visual dos óculos. Lentes de contato especiais são a forma mais eficiente de corrigir e melhorar a visão do paciente. Entretanto, a adaptação delas pode ser difícil dependendo do caso.
O tratamento da alergia ocular é importante para reduzir a vontade de coçar os olhos. Também pode auxiliar na adaptação da lente de contato, bem como no resultado de qualquer cirurgia.
Até o final da década de 90, basicamente só havia o transplante de córnea como opção cirúrgica para o ceratocone. Hoje em dia, temos cirurgias que podem ser indicadas antes do transplante, destacando-se o anel intraestromal e o cross-linking. Elas são indicadas quando o paciente não tem uma boa visão com a correção obtida pelos óculos ou pelas lentes de contato, ou quando tem progressão.
Em quais casos o transplante de córnea é indicado?
O transplante de córnea é indicado em casos avançados da doença, nos quais outros tratamentos não tiveram sucesso. O transplante de córnea é o que tem mais elevados índices de sucesso entre os transplantes de órgãos sólidos na medicina, sendo o ceratocone uma das indicações com melhores resultados. É importante que se
divulgue e promova a ideia para as pessoas doarem as córneas e os outros órgãos de familiares mortos. Esta atitude pode ajudar muitos pacientes que estão nas filas à espera de um órgão.
O ceratocone pode levar à cegueira?
O ceratocone pode levar à baixa visual, mas é uma forma “reversível” de cegueira. Cura é uma questão relativamente difícil e complexa. É possível, com o tratamento adequado, ter uma vida praticamente normal. Sendo uma doença progressiva, há necessidade de atenção nos casos suspeitos para realizar exames e fazer o diagnóstico precoce, e um acompanhamento para eventualmente detectar progressão.
Não é possível mais se prevenir a doença quando ela já está estabelecida, mas algumas atitudes podem prevenir o ceratocone: parar de coçar os olhos, esfregar o olho, dormir em cima do olho, fazer pressão sobre o olho.
Fonte: Renato Ambrósio Júnior, oftalmologista especializado em córnea e cirurgia refrativa, presidente da Sociedade Internacional de Cirurgia Refrativa, autor do livro “Tenho Ceratocone, e agora?!”, professor-adjunto de oftalmologia da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e professor-afiliado da pós-graduação em oftalmologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Diretor de córnea e cirurgia refrativa do Instituto de Olhos Renato Ambrósio e VisareRIO – Refracta Personal Laser no Rio de Janeiro.
Fonte: UOL – Saúde Viva Bem (https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/06/14/por-vergonha-de-usar-oculos-ele-perdeu-90-da-visao-do-olho-esquerdo.htm)